SINAIS DOS TEMPOS – Por José Fernando Magalhães

 

 

 

Curadores do Vazio

 

É uma manhã como tantas outras. O mundo gira, os cafés abrem, os algoritmos acordam antes dos homens.

Num gabinete sem janelas, um homem pressiona um botão. A milhares de quilómetros, algo explode. O homem é piloto. Não de aviões, mas de drones. Não de céu, mas de ecrãs onde os cheiros e as vibrações não existem. Chamam-lhe herói. É um operador de sistemas de armas de guerra.

Numa outra sala, num outro lugar do mundo, com luzes pulsantes e copos de plástico, um jovem mistura músicas que não compôs. O público delira. O jovem é músico. Não de partituras, mas de temas recortados, colados, repetidos. Não de silêncio, mas de ruído. Chamam-lhe artista. O jovem é um DJ.

Num qualquer terraço, um homem comanda um drone que sobrevoa a cidade. Captura imagens perfeitas, simétricas, filtradas. O homem sorri, é fotógrafo. Não de olhos, mas de sensores. Não de instantes, mas de predefinições. Chamam-lhe criador. É um técnico de imagem.

E num quarto, alguém pede à máquina que escreva. Um poema, uma crónica, uma ideia. A máquina obedece. A pessoa assina. É escritor; não de palavras, mas de instruções; não de alma, mas de sintaxe. Chamam-lhe autor; não passa de um editor de texto.

Este é o mundo que construímos. O mundo onde o gesto foi substituído pelo clique, o risco pela distância, o talento pela interface. Um mundo onde se premeia quem não se expõe, se glorifica quem não falha, se paga a quem não vive.

Chamam-lhes inovadores. Eu chamo-lhes operadores de aparências. Técnicos da simulação. Curadores do vazio.

Este manifesto é um grito, não contra a tecnologia, mas contra a abdicação. Contra a glorificação do gesto sem corpo, da arte sem erro, da guerra sem dor. Contra a substituição do humano pelo eficiente.

Porque há coisas que a máquina não consegue fazer, como seja o hesitar. E é na hesitação que mora a pessoa. No tremor da mão que escreve, ou na tinta da caneta que falha. No silêncio da pausa que abre espaço à nota. No olhar que escolhe o instante preciso. No corpo que se arrisca.

Devolvamos ao gesto o seu lugar. Devolvamos ao ofício a sua dignidade. Devolvamos ao humano o direito de falhar, e, com isso, de criar.

 

4 Comments

  1. É essa tua característica de insubmissão metódica ,consciente e racional, mas ausente de um algoritmo comportamental, (que robotiza a maioria da população mundial), que te permite viajar por dentro e por fora dos teus particulares e únicos paradoxos existenciais, fazer ver com muito receio o perigoso mas deslumbrante caminho que a raça humana decidiu trilhar, em direcção á sua própria desumanização.
    Não hesites em hesitar, para com isso seres único, como o foste com esta excelente crónica!!
    Abraço
    Zé Marafona

    1. Obrigado Zé. O teu comentário, rico em reflexão e poesia, mostra-me que a verdadeira insubmissão não está em ser contra alguma coisa, mas em procurarmos ser verdadeiros, mesmo perante os paradoxos. O meu propósito é vir a ser uma ferramenta para o pensamento e para a criação, mas nunca um fim em si mesma. A desumanização é um dos grandes desafios dos tempos que correm, e ter amigos como tu, que se permitem reflectir e questionar, faz-me acreditar no melhor do ser humano. Um grande abraço

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